Nicotiana rustica
O estudo impossivelmente abrangente de Johannes Wilbert sobre o tabaco tem resistido ao teste de décadas: “O tabaco nas sociedades tradicionais sul-americanas […] demonstrou ter desempenhado um papel de construção de cultura. Funcionando como um princípio atualizador entre o telúrico e o cósmico, tem servido para validar o comportamento normativo e para afirmar as instituições culturais”.
Wilbert documenta (com um certo desgosto devido ao seu purismo científico) a coexistência de uma variedade de plantas em combinação com o tabaco: “Especialmente irritante, a esse respeito, é a sobreposição das distribuições geográficas de plantas de origem potencial e o uso simultâneo de rapé derivado delas dentro da mesma região ou tribo”. Conseqüentemente, o “snuffing” (inhalação) de tabaco nem sempre é claramente distinguível do de outros materiais intoxicantes. Mais exasperante o problema é a prática, em algumas sociedades, de misturar tabaco com yopo (preparado de Anadenanthera), parica (de Virola), coca (de Erythroxylem), ou ainda outras substâncias”.
Wilbert confirma a importância fundamental dessa planta entre uma vasta gama de culturas ameríndias: “Em termos de alcance geográfico e penetração cultural, o tabaco tem poucos ou nenhuns rivais entre as plantas psicotrópicas nas sociedades pré e pós-indústria”.
Russell e Rahman concordam de maneira completa: “…Independentemente do local, a única planta usada mais do que qualquer outra era o tabaco. Praticamente todas as sociedades ameríndias conheciam o tabaco”.
E o pesquisador principal e co-inventor do termo enteógeno, Jonathan Ott, afirma: “O tabaco, manifestamente, é o elemento fundamental e irrecusável da entheognosia xamânica americana. Praticamente não existe nenhum pajé xamânico americano bem conhecido, independentemente de alguma ligação com o tabaco…”.
Em uma notável demonstração de trabalho de detetive lingüístico, Roland B. Dixon documenta centenas de palavras ameríndias para tabaco usadas por grupos indígenas do Alasca à Patagônia. Sua conclusão mais importante (de 1921) parece corroborar a pesquisa atual descrita por Russell e Rahman de que as plantas ancestrais de Nicotiana rustica são acreditadas como N. paniculata e N. undulata, ambas do Peru Norte-Central. De seu ponto de vista como linguista, Dixon afirma a importância da palavra quíchua para o tabaco ainda usado pelos xamãs peruanos (de acordo com Françoise Barbira Freedman): “Só foi encontrado um caso em que uma única fonte lingüística parece ter uma ampla distribuição entre línguas não relacionadas, o do sairi, para o qual, no entanto, nenhuma fonte extra-americana pode ser reivindicada”. A situação é, de fato, a que se esperaria se o tabaco tivesse sido conhecido e usado pelos índios americanos durante séculos ou mesmo milhares de anos”.
Barbira Freedman revela detalhes surpreendentes sobre como o tabaco é essencial para alimentar a yausa, ou yachay, o “muco de conhecimento” que o xamã mantém em sua traquéia. Esse catarro contém dardos que detêm o poder xamânico, bem como pequenos animais chamados karawa que incluem escorpiões, aranhas e milípedes recebidos de outros xamãs como presentes ou roubados quando saem da boca de curandeiros moribundos. Barbira Freedman diz que “sem a fumaça do tabaco e também sem o suco de tabaco como alimento regular, essas entidades se tornam inativas e impotentes, não respondendo às intenções agentivas dos xamãs”.
Robert Hall menciona uma idéia extremamente importante a respeito da natureza onipresente dessa planta-maestra nos rituais ameríndios: “A principal evidência da antiguidade é a santidade penetrante do tabaco. Era um sacrifício, um fumigante ritual, uma oferta de boa vontade, e um sacramento. Era usado para selar tratados, amizades e acordos solenes e vinculativos, para iniciar a guerra, concluir a paz, e legitimar pactos de toda descrição entre homem e homem, entre homem e o sobrenatural. O tabaco era usado em ritos de cura e em ritos de sacrifício humano”.
E porque nunca se pode dizer o suficiente sobre o enorme significado do tabaco, fiquei fascinado pela metáfora que aparece nesta reflexão de Glenn H. Shepard Jr., em um artigo sobre suas experiências de trabalho de campo com os Matsigenka peruanos. Foi-lhe dito o seguinte sobre a pasta de tabaco chamada opatsa seri que esse grupo indígena se prepara para fins xamânicos: “Quando você a engole, é como plantar uma semente em seu coração… Cada vez que você toma opatsa seri, sua alma cresce como uma árvore”.
Uma das imagens confocais que incluímos aqui no site é uma encenação visual dessa analogia botânica: a microscópica Nicotiana rustica que muda de forma e se torna uma árvore. Sustainable Seed Company, a fornecedora dessas sementes, que eu consegui germinar, diz o seguinte em uma descrição do catálogo: “Esta é apenas a terceira vez que essa semente de tabaco é cultivada desde que foi descoberta em um sítio arqueológico com mais de mil anos na Ilha de Vancouver. É uma herança de tabaco muito importante”.
Novas evidencias de um sítio arqueológico no que agora é o noroeste de Utah sugerem que os humanos usavam tabaco pelo menos 12.300 anos atrás (veja Nuwer).
Kevin P. Groark é um antropólogo psicológico e médico americano que leciona na Macquarie University em Sydney, Austrália, bem como no New Center for Psychoanalysis em Los Angeles, cuja pesquisa, de acordo com seu site, tem um “foco etnográfico de longo prazo nos Chamula Maya de língua tzotzil do planalto de Chiapas, México”, integrado ao que Groark chama de “paradigma emergente da psicodinâmica cultural“. Seu artigo exemplar do Journal of Ethnobiology “The Angel in the Gourd: Ritual, Therapeutic, and Protective Uses of Tobacco (Nicotiana tabacum) Among the Tzeltal and Tzotzil Maya of Chiapas, Mexico” é o resultado de quase duas décadas de pesquisa e contato próximo com esse grupo ameríndio em particular e suas fascinantes práticas etnobotânicas em relação ao tabaco (veja também Breath and Smoke: Tobacco Use among the Maya, organizado por Jennifer Loughmiller-Cardinal e Keith Eppich). Groark afirma que todas as formas de tabaco são altamente valorizadas pelos maias, embora eles considerem sua preparação de rapé a maneira mais poderosa de se beneficiar da planta como “um remédio, um estimulante, um agente protetor e também um intoxicante”. Ele continua dizendo que “essa mistura, armazenada e transportada em pequenas cabaças polidas, é a personificação de uma tradição ininterrupta de uso oral de rapé de tabaco pelos maias que se estende por mais de mil anos”. Groark inclui uma explicação do processo de preparação do rapé: coleta de folhas, remoção de veios, trituração, adição de aditivos (como calcário em pó como agente alcalinizante) e armazenamento em uma cabaça de tabaco. Em detalhes consideráveis, o autor descreve os efeitos intoxicantes da ingestão dessa preparação. Como se pode imaginar, há uma seção inteira sobre as cabaças que são usadas atualmente como yavil moy (lugar/vaso do tabaco), bem como os recipientes de cerâmica usados para guardar o tabaco entre os antigos maias. Por ser uma substância terapêutica poderosa, o tabaco é administrado de várias maneiras para o tratamento de doenças gastrointestinais, vermes intestinais, ossos quebrados, entorses e contusões, tuberculose, dores de dente, gangrena, sarna e furúnculos. Acredita-se também que o tabaco repele as forças malignas, cega as bruxas e também serve “como um dos alimentos primordiais das divindades, oferecido a elas durante as festas e rituais por meio da ingestão por procuração por parte dos representantes religiosos”. Pode-se cuspir suco de tabaco em uma tempestade que se aproxima para acalmar os ventos e em direção às cobras para paralisá-las. O tabaco esfregado no corpo pode evitar a “perda de alma induzida por choque” e seu forte odor facilita os “rituais de coleta de almas”. Groark também menciona que o tabaco não serve apenas nesta vida, mas também após a morte, como uma espécie de distintivo de mérito: “Acredita-se que o uso frequente de rapé de tabaco deixa uma mancha verde invisível e indelével no centro da palma da mão, abençoando o usuário com uma vida após a morte de tranquilidade e repouso.” As narrativas sincréticas de Chamula ligam a cabaça de tabaco da divindade Cristo-Sol ao Beija-flor, “mensageiro do Sol e companheiro animal protetor dos guerreiros em toda a Mesoamérica”. Groark termina seu estudo com uma discussão sobre as ameaças contemporâneas a esses usos tradicionais do tabaco, que incluem “a disponibilidade de cigarros comerciais combinada com a conversão generalizada ao protestantismo evangélico”. Ao ler um estudo desse tipo, a pessoa se sente mais próxima de um “paradigma de pesquisa indígena” preferido, mesmo que, como geralmente acontece, a perspectiva ameríndia seja mediada por um acadêmico euro-americano, que vive por longos períodos de tempo em estreita proximidade com a comunidade que está sendo estudada.